Muito além do uso: a complexa realidade da autopercepção de vício em pornografia (SPPA)
- Andréa Menezes

- 26 de jul.
- 5 min de leitura
O universo das nossas emoções e comportamentos é vasto e, muitas vezes, cheio de nuances que merecem nossa atenção. Quero destacar um tema que, embora bastante discutido, ainda gera muita confusão e até preconceito: a autopercepção de vício em pornografia. Você já ouviu falar do conceito de SPPA (Self-Perceived Pornography Addiction)?
SPPA: Mais do que um Diagnóstico, uma Percepção Pessoal
Quando falamos em "vício em pornografia", é comum imaginarmos um diagnóstico formal, com critérios bem definidos. Mas o SPPA é um pouco diferente. Ele se refere à percepção individual de que a pessoa está "viciada" em pornografia, independentemente de haver um diagnóstico clínico estabelecido por um profissional de saúde mental.
É como se a pessoa sentisse um uso excessivo, percebesse que esse uso está trazendo consequências negativas para a vida dela – como isolamento, problemas nos relacionamentos ou um impacto psicológico significativo – e, com base nisso, se autoidentificasse com essa condição.
No entanto, aqui entra um ponto crucial, especialmente para nós, da área da psicologia: ainda não existe um consenso claro sobre o que define o SPPA ou quais são suas causas exatas. Ele é um conceito que está em debate, influenciado por diversas perspectivas teóricas. Para alguns, pode ser visto como um modelo de vício; para outros, uma compulsão sexual; e para muitos, está ligado a conflitos com valores pessoais. É essa falta de um entendimento unificado que torna o tema tão complexo.

O Que a Pesquisa nos Mostra?
Um artigo publicado no Journal of Sexual Medicine (J Sex Med) em 2016, pela International Society for Sexual Medicine que fez uma revisão sistemática sobre o tema, incluindo estudos quantitativos e qualitativos publicados até 2015, buscou entender como o SPPA impacta a vida dos usuários e de seus parceiros. Foram analisados 10 estudos robustos, buscando entender os efeitos desse fenômeno.
Um dos achados mais interessantes foi justamente a variação nas definições de SPPA entre os estudos. Embora a maioria o associasse ao uso excessivo e às suas consequências negativas, essa diversidade de definições dificultou generalizar os resultados – um lembrete importante do rigor que precisamos ter ao analisar pesquisas na nossa área, não é mesmo?
Os Impactos Reais da Autopercepção de Vício em Pornografia
O que a pesquisa nos mostrou de forma consistente é que, independentemente da definição, a autopercepção de vício em pornografia está associada a uma série de efeitos negativos que impactam diversas esferas da vida de uma pessoa.
Vamos olhar mais de perto:
Impactos Intrapessoais (no próprio indivíduo):
Psicológicos: É muito comum que a pessoa sinta uma carga enorme de vergonha, culpa e sentimentos de inadequação. A autoestima pode despencar, e a identidade pessoal pode ser abalada.
Cognitivos: Perda de confiança, dificuldade de concentração e um aumento constante de preocupações são queixas frequentes. A mente fica "presa" nesse ciclo de pensamentos intrusivos.
Físicos: Embora menos explorado, alguns estudos apontam para uma diminuição do bem-estar físico.
Impactos Interpessoais (nos relacionamentos):
Aqui, a coisa fica ainda mais delicada. A autopercepção de vício em pornografia pode levar à quebra de confiança, à deterioração da segurança emocional e a sérios problemas sexuais dentro do relacionamento.
Os parceiros, em particular, relatam uma experiência muito mais severa. Muitos descrevem sentimentos de traição, abandono, isolamento e uma culpa profunda. A forma como veem seus companheiros pode mudar radicalmente, de "bons" para "mentirosos", "egoístas" ou "inadequados", o que é extremamente doloroso. É um impacto que muitos descrevem como traumático e devastador, com a erosão do senso de integridade e do bem-estar mental e físico.
Impactos Extrapessoais (fora do indivíduo):
As consequências podem se estender para as finanças, com o aumento de dívidas, e para o ambiente profissional, com perda de tempo e produtividade no trabalho.
Um Olhar Surpreendente: Valores e Percepções
Um ponto interessante é que três dos dez estudos avaliados sugerem que o impacto negativo pode estar mais relacionado aos valores e percepções dos indivíduos sobre o uso de pornografia do que ao uso em si. Ou seja, não é o uso em si, mas a crença de que aquilo é errado ou problemático, que gera o sofrimento.
Isso desafia muitas das definições existentes e nos convida a pensar de forma mais complexa: será que a angústia não está mais na dissonância entre o comportamento e os valores pessoais, ou na percepção de inadequação social, do que numa "dependência" química ou neural? É uma pergunta que nos leva a um campo de pesquisa riquíssimo, que precisa ser explorado, concorda?
A Saúde Mental e o Funcionamento Social em Jogo
A autopercepção de vício em pornografia pode afetar diretamente a saúde mental e o funcionamento social:
Saúde Mental: Além da vergonha e culpa já mencionadas, há um risco aumentado de ansiedade e depressão. O conflito interno, quando o uso vai contra os valores morais ou religiosos, pode ser uma fonte enorme de sofrimento psicológico.
Funcionamento Social: Não é raro que a pessoa comece a se isolar de amigos e familiares, justamente por vergonha ou culpa. As dificuldades nos relacionamentos se acentuam, e a concentração no trabalho ou nos estudos diminui, levando à perda de produtividade. Há uma alteração na percepção social, onde o indivíduo pode se sentir julgado ou inadequado, o que só aumenta os sentimentos de exclusão.
É importante ressaltar que os autores do artigo destacam a falta de consenso sobre a definição e etiologia do SPPA, bem como as limitações metodológicas dos estudos revisados, como amostras homogêneas, medições inadequadas e falta de representatividade.
Minhas Reflexões Finais
Como vimos, o SPPA é um tema complexo e multifacetado. Embora as discussões sobre ele sejam amplas, a comunidade científica ainda busca um entendimento mais unificado e ferramentas de medição mais eficazes. A falta de consenso sobre se ele é um "transtorno clínico" real é um ponto importante para se ter em mente.
Para mim, como profissional, fica claro que a dor e o impacto que a pessoa sente são reais, independentemente de um rótulo formal. A autopercepção de vício em pornografia, com todas as suas consequências emocionais, relacionais e sociais, merece ser abordada com empatia, compreensão e, claro, com base nas melhores evidências científicas disponíveis.
Se você ou alguém que você conhece está passando por isso, saiba que buscar ajuda é um passo fundamental. É um convite para entender não só o comportamento em si, mas também os valores, as emoções e as percepções que estão por trás dessa experiência.
FONTE ARTIGO:
Duffy, A., Dawson, D. L., & das Nair, R. (2016). Pornography Addiction in Adults: A Systematic Review of Definitions and Reported Impact. Journal of Sexual Medicine, 13(5), 760–777. https://doi.org/10.1016/j.jsxm.2016.03.002


Parabéns pelo artigo minha querida! Enriquecedor para nosso conhecimento e prática profissional!