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A Ditadura do Prazer

Recentemente participei de um colóquio promovido pela associação “Médicos de Cristo”, onde fui convidada para falar sobre o tema “O hedonismo da sociedade moderna por trás de uma sociedade doente/viciada”.  Foi uma experiência muito agradável e de muito aprendizado.  Tanto, que resolvi compartilhar aqui um pouco da minha fala e das reflexões que o tema me provocou.


Quem não gosta de sentir prazer? De uma boa comida, de uma risada gostosa, daquele momento de descanso que recarrega as energias? O prazer é parte essencial da vida. Mas e se a busca incessante por ele – por um prazer cada vez mais imediato e intenso – estivesse, na verdade, nos adoecendo? Essa é uma das grandes questões da sociedade moderna, um verdadeiro paradoxo em que nos vemos cada vez mais conectados e, ao mesmo tempo, estranhamente viciados e insatisfeitos.


Vivemos na era do "tudo para já", da gratificação instantânea. Nossos smartphones são extensões dos nossos desejos, entregando comida, entretenimento e validação social a um toque. Essa busca frenética por sentir-se bem o tempo todo, essa fuga constante do desconforto, tem um nome: hedonismo. Mas não estou falando daquele hedonismo filosófico que preza o prazer como o bem maior, de forma equilibrada. Falo de uma versão distorcida, quase uma ditadura do prazer, onde a fuga da dor e a busca por recompensas rápidas se tornam o motor principal da nossa existência.


Desvendando o Hedonismo Moderno

Pense comigo: nosso cérebro é uma máquina incrível, programada para buscar recompensas. A dopamina, essa "moeda" do prazer, nos impulsiona a repetir ações que nos dão satisfação. No entanto, o que acontece quando o mundo à nossa volta é desenhado para nos dar muita dopamina, muito rápido, o tempo todo?


A Dra. Anna Lembke, em seu livro perspicaz "Nação Dopamina”, explora exatamente isso. Ela nos mostra como a abundância de estímulos prazerosos em nossa sociedade — de smartphones e redes sociais a jogos, pornografia e alimentos ultraprocessados — pode desregular nosso sistema de recompensa. Nosso cérebro se adapta a níveis elevados de dopamina, o que nos leva a precisar de doses cada vez maiores para sentir o mesmo prazer, ou simplesmente para não sentir dor e vazio. É um ciclo que nos empurra para a compulsão, para o vício.


A Ponte entre o Prazer Imediato e o Vício

É aí que o hedonismo desenfreado se encontra com a porta de entrada para o vício. A sociedade moderna, com sua cultura de consumo e gratificação instantânea, atua como um grande laboratório, testando os limites da nossa capacidade de lidar com a busca por prazer.


O vício, seja ele de substâncias ou de comportamento, não surge do nada. Ele muitas vezes se aninha naquele espaço onde tentamos preencher um vazio, anestesiar uma dor ou fugir de uma realidade que nos incomoda. E a nossa cultura, com sua aversão ao sofrimento e sua promessa constante de felicidade fabricada, nos diz que há sempre uma pílula, uma compra, um vídeo, uma notificação para nos resgatar do tédio ou da tristeza. O problema é que esses "atalhos" para o prazer se tornam, em pouco tempo, um beco sem saída.


Tão perto e tão longe.
Tão perto e tão longe.

Novos e Antigos Vícios: Os Rótulos Mudam, a Essência Permanece

Claro, os "vícios antigos", como o álcool e outras drogas, continuam presentes, muitas vezes com uma roupagem mais sofisticada e socialmente aceitável. Mas a sociedade moderna trouxe uma leva de "vícios novos", muitas vezes invisíveis e silenciosos, mas igualmente devastadores:


  • Redes Sociais: A busca incessante por validação através de curtidas e comentários, a comparação com vidas "perfeitas" alheias, o medo de ficar de fora.

  • Jogos Online: A imersão em realidades paralelas que oferecem recompensas imediatas e uma sensação de controle, diferente da vida real.

  • Compras Online: A facilidade de acesso e o anonimato que facilitam a compulsão por comprar, muitas vezes para preencher um vazio emocional.

  • Pornografia: A acessibilidade e o anonimato que podem levar a padrões de consumo compulsivo, com impactos negativos na vida real.

  • Alimentos Ultraprocessados: Desenvolvidos para serem hiperpalatáveis, eles ativam nosso sistema de recompensa de forma viciante, contribuindo para a compulsão alimentar.


Em essência, a "moeda" pode mudar – de uma substância para um comportamento –, mas o mecanismo de fuga, de busca por alívio ou prazer imediato, permanece o mesmo.


O Preço de Uma Sociedade Doente

O paradoxo é cruel: quanto mais corremos atrás do prazer fácil e instantâneo, mais nos afastamos da verdadeira satisfação e do significado. A obsessão pelo "estar bem" o tempo todo nos torna menos capazes de tolerar o desconforto, que é parte inegável da vida.


O resultado? Uma sociedade mais ansiosa, deprimida, com dificuldades de concentração e de relacionamento, mesmo com tanta "conexão". Vemos a superficialidade das relações em detrimento da profundidade, uma sensação de vazio e insatisfação crônica, mesmo quando, do ponto de vista material, "temos tudo".


Para Onde Vamos? Encontrando o Equilíbrio

Não se trata de demonizar o prazer. Longe disso! O prazer saudável é vital. A questão é reconhecer a diferença entre um prazer que nutre a vida e uma compulsão que a aprisiona.


A reflexão que proponho é um convite à consciência. Um convite para questionarmos: estamos realmente buscando a felicidade ou estamos apenas fugindo do desconforto? Estamos no controle das nossas escolhas ou somos reféns do próximo "click", da próxima compra ou da próxima "dose" de gratificação?


Talvez a verdadeira liberdade não esteja em acumular prazeres, mas em encontrar equilíbrio. Em aprender a tolerar o desconforto, a cultivar a resiliência e a buscar significado e propósito em coisas que vão além da gratificação instantânea. É um processo, claro, mas fundamental para que possamos construir uma sociedade mais saudável e, de fato, mais feliz.



CITADO:

LEMBKE, Anna. Nação Dopamina: por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar. Tradução de Elisa Nazarian. São Paulo: Vestígio, 2022


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Tel: (61) 98436-5240

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